Jessica Gotlib
É quarta-feira. Ao longo do dia, me lembro algumas vezes que é dia de sentar para meditar. Planejo os compromissos para que os horários se encaixem. Depois das 18h fico atenta ao relógio. É preciso considerar o trajeto e um possível trânsito. Entro no carro, preparo o mapa e ligo o rádio.Me dou conta de que estou sem óculos. Subo depressa para buscá-los.O mapa diz que o trajeto deve demorar 18 minutos. Chego em 15. Ótimo. Estou no horário com certa margem.Entro. Assino. Cumprimento. Primeiro sinal.Segundo sinal.Vamos aos nossos lugares. Sentamos.A noite está quase quente, mas já houve calor pior. Não há muita brisa vinda das duas grandes janelas hoje. O incenso tem um cheiro suave, quase não o percebo.Na rua, os cachorros latem. Alguém passa. Conversam. São três pessoas? A primeira porta se abre e fecha. A conversa continua. A segunda porta se abre e bate. Silêncio. A terceira porta também abre e fecha. Silêncio. Não vão ligar o carro? Estariam chegando e não saindo? Enfim, a partida. O carro sai.Retorno.Minha respiração hoje é composta por inspiração e expiração muito curtas, como de quem pratica exercício físico. Mas estou sentada. Meu corpo em repouso. Coração acelerado. Algo está preso entre meu tórax e abdome.Retorno.Minha postura está correta? Às vezes tendo a entortar para a direita. Pela minha sombra, hoje parece correta. Minha perna direita ainda não adormeceu, deve ser um bom sinal. Na rua, o cachorro late novamente. É um sinal.Retorno.O ar continua entrando e saindo muito rápido. Aquilo que estava preso no tórax agora sobe pelo pescoço e chega até minha cabeça. Começo a sentir náuseas. Hoje não estou muito bem. Quero chorar, mas seguro.Retorno.Mais carros passam na rua. Alguém se movimenta dois lugares à minha direita. As formigas pequenas dançam na parede à minha frente. Vão e voltam seguindo o rastro da anterior. Àsvezes desistem ao encontrar outra na metade do caminho. Se tocam. Parecem se cumprimentar.Retorno.Não consigo conter a lágrima. Ela cai. Depois outra. Depois uma terceira. Começo a me sentir aliviada. Mas não é hora de chorar. Minha respiração se torna mais espaçada. A rua agora faz silêncio. Um som agudo parece piar de algum pássaro. Pássaro à noite? Seria um morcego? Na roça tinha bastante morcego.Retorno.Minha perna direita segue sem problemas. Mas notei que ergui a cabeça. Saí da postura. Estou com os olhos totalmente abertos. Mirando fixamente, mas não vendo a parede. Volto à posição correta. Olhos a 45°. Não sou boa em geometria. Algum dia vou ter certeza se meus olhos estão realmente a 45°?Retorno.Novo pio. Pode ser um morcego. Pode ser um pássaro de hábitos noturnos, como corujas. Nunca vou saber. Os cachorros latem. Ainda não há brisa. A sala levemente quente. Todos imóveis. Desfaço o mudra cósmico por um instante para limpar o resto de lágrima.Retorno.Não estaria na hora do kinhin? Respiro. Alguns passos atrás de mim. Ouvimos o sinal.Kinhin. Mais um período sentados. Chá. Conversa. Despedida. Fim do Zazen desta quarta-feira.É hora de estar presente em outro lugar.Respiro. Retorno. Procuro estar atenta.